30.10.06

Razões jurídicas contra o aborto livre

Em próximo referendo seremos chamados a pronunciar-nos sobre se concordamos ou não "com a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, se realizada, por opção da mulher, nas 10 primeiras semanas, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado".
Tal pergunta, na referência que faz a um fenómeno de despenalização, confronta-nos basicamente com a questão de saber se o nosso ordenamento jurídico deve valorar positiva ou negativamente um determinado comportamento, com as correspondentes consequências no plano sancionatório. E isto porque despenalizar é retirar valor jurídico negativo a determinados comportamentos, que deixam de ser objecto de consideração pelo Direito Penal e passam a ser considerados aceitáveis pelo ordenamento jurídico.
Especificamente, o comportamento que está em questão é o correspondente à prática pela mulher do aborto livre (livre na decisão de o praticar e na fundamentação dessa decisão) nas dez primeiras semanas da gravidez, perguntando-se se esse comportamento será de despenalizar, particularmente, quando for praticado em estabelecimento de saúde legalmente autorizado.
Resumindo, a questão (depois de depurada de arranjos estético-linguísticos encontrados pela Assembleia da República) é a seguinte: é juridicamente aceitável no nosso ordenamento o aborto realizado por livre e unilateral decisão da mulher nas circunstâncias de tempo e lugar supra-identificadas?
A esta pergunta responderei: "não". E responderei deste modo não só por imperativo de consciência, mas também em resultado da ponderação dos seguintes argumentos jurídico-políticos:
1.º A Constituição baseia a República na dignidade da pessoa humana (art. 1.º), e nesta referência aponta decisivamente no sentido de que os seres humanos não podem ser em nenhum momento, nem com referência ao período da sua gestação, degradados à condição de meros objectos ou mesmo à condição de meros exemplares de uma espécie; o ser humano não começa por ser objecto - simples coisa - no período gestacional, para só mais tarde se transformar em pessoa; o ser humano é depois de nascer, o que sempre foi desde que se iniciou a sua gestação; tem e sempre teve a mesma dignidade fundamental de pessoa humana.
2.º Admitir, nos termos ora questionados, o aborto livre (o aborto que se pode realizar por qualquer razão, simplesmente porque se quer, sem mais ou sem que o ordenamento jurídico queira saber mais) é pôr em crise o valor fundamental da dignidade humana; é degradar o ser humano em gestação à condição de mero objecto - à condição de coisa livremente disponível pela vontade de outrem -, esquecendo-se e preterindo-se a sua dignidade fundamental de pessoa humana; juridicamente só objectos ou coisas - e mesmo assim nem todas - são livremente disponíveis; a realidade humana não se encontra à livre disposição de ninguém, sob pena de a degradarmos;
3.º Por outro lado, a Constituição determina que a vida humana é inviolável (art. 24, n.º 1), impondo por esta via não só a protecção da vida dos seres humanos nascidos, mas também, e designadamente, uma proibição de se pôr em crise o nascimento da vida humana; prejudicar o nascimento de um ser humano é violar a vida humana, no sentido de que esta deixa de se realizar; a vida humana é inviolável tanto na sua actualidade com em todo fenómeno que a potencie;
4.º Neste sentido, aceitar uma solução de aborto livre é também admitir que a vida humana nascente pode sucumbir diante da ponderação de quaisquer interesses - mesmo os mais egoísticos - que serão afinal considerados - todos eles - primaciais; é recusar a inviolabilidade de princípio da vida humana; é admitir a sua violabilidade de princípio;
5.º Os valores da dignidade da pessoa humana e da vida humana podem surgir, em concreto, em conflito com outros valores, impondo-se nesses casos uma adequada ponderação dos valores conflituantes (vida versus vida; dignidade humana versus dignidade humana); e pode caber ao legislador definir para esses casos critérios de ponderação de valores conflituantes; o que o legislador não pode fazer, porque a Constituição não o admite (art. 24, n.º 1), é pôr o ordenamento jurídico na posição de quem aceita em branco situações de decaimento absoluto dos seus próprios valores fundamentais.
Neste sentido, em síntese, admitir o aborto livre, sem condicionar a sua realização a situações gravíssimas de conflito de valores homólogos, não só fere a dignidade da pessoa humana como implica que se abra espaço para a violação indiscriminada da vida humana.
Contra este entendimento não se diga que o que se pretende com uma solução de aborto livre é, humanisticamente, retirar o estigma criminal a quem aborta e evitar a aplicação nestes casos de sanções penais tradicionais e desajustadas. É que, por um lado, esse estigma – onde existe – não nasce por decreto; resulta antes e desde logo de uma valoração negativa que o próprio corpo social faz acerca de comportamentos humanos. Acresce que o Direito Penal não pode deixar de cumprir a sua função básica que é a de assegurar a integridade do ordenamento jurídico com referência aos seus valores ou bens jurídicos essenciais, protegendo-os e oferecendo meios jurídicos de reacção contra comportamentos que os prejudiquem. Enquanto a dignidade da pessoa humana e a própria vida forem valores fundamentais do nosso ordenamento, o Direito Penal não pode nunca desinteressar-se da sua protecção, maxime em questões como as do aborto: tem de cuidar da sua garantia; e se esta garantia tiver de passar por sanções, o Direito Penal não pode deixar de as prever, ainda que procure que sejam ajustadas, adequadas ou proporcionadas.
Contra a solução que está agora posta em questão, militam ainda outros argumentos pontuais a que só muito sumariamente farei referência:
1.º A solução de permitir a realização do aborto por opção unilateral da mulher, descuidando-se a posição do homem, viola o princípio da igualdade (art. 13.º da CRP) e a valorização constitucional da paternidade e não só da maternidade (art. 68.º da CRP);
2.º Essa solução é arbitrária, e por isso a-jurídica, ao permitir o aborto livre até às dez semanas de gravidez (porquê dez semanas?);
3.º Na lógica da solução proposta – que não aceitamos – não se compreende que se despenalize uma situação só na medida em que o comportamento que a determina se realize em determinadas circunstâncias de lugar: não é criminosa a mulher que aborte em estabelecimento de saúde legalmente autorizado, mas já é criminosa a que aborta em qualquer outra circunstância de lugar; a solução proposta é assim, neste aspecto, atenta a sua própria lógica, incoerente.


AFONSO D’OLIVEIRA MARTINS
Doutor em Direito
Professor da Faculdade de Direito da Universidade Lusíada
Advogado

in, Vida e Direito. Reflexões Sobre Um Referendo. Cascais: Principia, 1998, pp. 13-15

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