30.10.06

A vossa vida é importante para nós

Os factos - O aborto provoca dois danos gravíssimos: a morte do filho; lesões, geralmente muito graves, no corpo e no equilíbrio psíquico da mãe. É nesta dupla perspectiva que tem de ser considerado.
O Direito - A Constituição da República garante o direito à vida (artigo 24.º, n.º 1). É o primeiro direito da pessoa, na própria ordem constitucional. Não pode ser restringido (artigo 18.º, n.º 2), e desenvolve-se na proibição da pena de morte (artigo 24.º, n.º 2). Qualquer lei que permita que se mate outrem - seja por que motivo for, mesmo no caso da autoria dos mais graves crimes - é inconstitucional. Pelo que uma lei que permita que se mate um ser humano no ventre da mãe, seja sob que pretexto for, é inconstitucional.
A integridade moral e física das pessoas é inviolável (artigo 25.º, n.º 1, a não ser que do atentado a essa integridade resulte um bem consideravelmente superior (uma intervenção cirúrgica para curar uma doença grave). Portanto, a mãe não poderá atentar contra si própria, provocando um aborto.
A vida intra-uterina - Tem-se afirmado que o ser humano no ventre da mãe é um ser vivo, mas não um ser humano. Propomos para resolução deste "problema" uma análise assente na realidade. Cada um de nós existe desde o momento da concepção. Se fosse possível recuar no tempo e destruir as duas células no segundo a seguir ao da concepção de um ser humano hoje nascido, a "Maria", não era uma parte do corpo da mãe que seria destruída: seria a "Maria" que deixaria de existir.
O conflito de interesses - O que está em causa é um conflito de interesses entre o ser humano-mãe e o ser humano-filho. Sendo que os "interesses" da mãe se reduzem, no referendo em curso, à sua simples vontade. Pela primeira vez na história de Portugal, se permite que um ser humano seja inteiramente livre para dispor da vida de outro - e livre para dispor de si próprio. É inaceitável. Na base da nossa vida social, do nosso Direito, do Estado de Direito democrático, está o total respeito pelo outro, tão importante como eu, e pela integridade física do próprio. O desrespeito pelo outro traduz o fim do Estado de Direito e do Direito.
O referendo – A vida não se referenda: respeita-se e protege-se. A vida não pode depender do Direito ou da sociedade: está antes deste que só existem para a servir. O mesmo se diga quanto à integridade física e moral da mãe.
O Direito está constituído para defender os mais fracos: os mais pobres, os mais dependentes, os mais novos, os perturbados psiquicamente, etc. Colocá-lo ao serviço dos mais fortes (os adultos) contra os mais fracos (as crianças) é negar o Direito. Como é destruir o Direito permitir que alguém (a mãe) cause a si própria um dano.
Neste referendo, os principais interessados - os que vão perder a vida - não podem ser ouvidos.
Receio que, em breve, os que sobreviverem, vão referendar o direito a viver dos que serão mantidos pelos impostos pagos por eles: os velhos, os doentes, os "inúteis" - os pais e as mães de hoje.
A vida de qualquer ser humano tem sempre o mesmo valor e é igualmente digna de ser vivida.


DIOGO LEITE DE CAMPOS
Doutor em Direito
Professor Catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra
Administrador do Banco de Portugal

MÓNICA HORTA NEVES LEITE DE CAMPOS
Advogada

in, Vida e Direito. Reflexões Sobre Um Referendo. Cascais: Principia, 1998, pp. 50-51

«Não» à descriminalização do aborto livre

Pede-se-me um depoimento, uma revelação pública da minha resposta à pergunta que vai ser colocada aos portugueses no próximo referendo sobre o aborto. Afinal, uma declaração de voto. Cingir-me-ei, pois, ao pedido, no espaço deste curtíssimo texto.
Votarei «Não». Não à descriminalização do aborto livre ou a pedido da mulher durante as primeiras dez semanas de gravidez, porque é de uma verdadeira e própria descriminalização que se trata.
Apesar dos muitos intentos de mascarar realidades, ninguém de boa-fé, conhecedor de noções básicas de direito penal, poderá negar que permitir a destruição voluntária, sem qualquer indicação, de uma vida humana intra-uterina representa a degradação desta, nos primeiros dois meses e meio de existência, a um nada jurídico.
Passo a explicar a afirmação.
Hoje e independentemente do referendo, o Código Penal português exclui a ilicitude de certas condutas que, apesar de integrarem a descrição típica do art. 140.º (crime de aborto), se entende deverem ser toleradas pelo Direito, por traduzirem uma decisão tomada num agudo conflito de interesses. Verifica-se, por assim dizer, um choque de bens jurídicos: o desenvolvimento do processo vital embrionário põe em perigo outros bens igualmente acautelados pela ordem normativa. O Direito considera então que, nessas precisas circunstâncias, o sacrifício da vida intra-uterina está justificado.
Este sistema - vigente entre nós independentemente do referendo, repito – e a que a doutrina chama «sistema de indicações», abrange já todas aquelas situações dramáticas que comovem o cidadão comum. Pense-se nos casos em que a prossecução da gravidez traz consigo grave perigo para a vida ou para a saúde física ou psíquica da mulher – incluídos aqueles em que a perturbação psíquica é provocada por problemas económico-sociais; figurem-se as hipóteses em que a gravidez resulta de crime sexual; considerem-se ainda as situações de doença grave ou malformação do próprio feto. A lei penal que já temos não permite que alguém sofra pena por um aborto praticado nestas circunstâncias.
Apetece então perguntar: que falta? Que outras causas se podem excogitar que realmente justifiquem a destruição impune de uma vida humana em gestação? Que outros bens jurídicos podem entrar em colisão com a vida intra-uterina, suplantando-a em carência de protecção?
Só é possível compreender a proposta do aborto livre (ou por simples manifestação de vontade da mãe nesse sentido) mudando a lógica com que até agora, seguindo o legislador penal, trabalhámos. O aborto livre ou a pedido supõe não um conflito de bens jurídicos mas a gratuita supressão de um deles. Ficciona-se que durante as dez primeiras semanas de gravidez e sempre que a mãe o pedir, não existe bem jurídico vida intra-uterina. Isto é: vida humana em processo de desenvolvimento obviamente que existe – isso é um dado adquirido e unânime da ciência médica que não compete ao Direito contradizer; o poder jurídico-penal sobre um facto biológico consiste tão-só em reconhecer-lhe ou negar-lhe relevância para efeitos de protecção. O que deixa de existir é precisamente esta protecção. Em suma: nas condições que a pergunta do referendo aponta, o bem jurídico-penal vida intra-uterina desapareceu.
Só reaparece se alguém, contrariando a vontade da mulher, a fizer abortar. Nesse caso e paradoxalmente, o crime revive: revive como crime de aborto e não, como a lógica exigiria, um delito contra a liberdade e a integridade física da mulher.
Concluindo: a introdução de um «sistema de prazos», de um simples «espaço de tempo» dentro do qual é negada ao feto toda e qualquer protecção por parte do Direito, representa um salto de qualidade no tratamento legislativo do crime de aborto que, em meu entender, não deve consentir-se. A única razão político-criminal pela qual poderia admitir-se um ensaio de tal opção legislativa consistiria em provar que tal descriminalização diminuiria o número total de abortos ou, pelo menos, eliminaria os clandestinos. Ora - como a experiência de outros países documenta amplamente - o que se verifica é que aumenta o número total de abortos (legais + clandestinos) e se mantém a dimensão do fenómeno do aborto clandestino.
Julgo que para declaração de voto já basta.


CRISTINA LÍBANO MONTEIRO
Mestre em Direito
Assistente da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra

in, Vida e Direito. Reflexões Sobre Um Referendo. Cascais: Principia, 1998, pp. 48-49

Em defesa da vida

O Direito à Vida deve ser entendido como o mais primário dos direitos), na medida em que é condição essencial da existência de todos os outros denominados direitos fundamentais: o direito à habitação, o direito ao trabalho, o direito à educação ou o direito à segurança social.
Sem vida humana nenhuma liberdade, nenhum direito mesmo fundamental, fazem qualquer sentido.
O Direito à Vida é a consagração do mais basilar princípio da nossa cultura, da nossa sociedade - a Dignidade da Pessoa Humana.
O Direito à Vida é o direito de não ser morto. O direito a não ser morto em nenhuma fase da vida. Em nenhuma circunstância.
O Direito à Vida não se restringe apenas à mera protecção da vida de entes dotados de personalidade jurídica, é muito mais do que isso, abrange, e tem que abranger forçosamente, sob pena de impossibilidade de existência desta mesma personalidade, o direito à vida pré-natal.
É portanto, uma incoerência, a liberalização do aborto!
A Vida Humana é inviolável e indisponível. A mulher tem direito ao seu corpo, mas não tem, certamente, qualquer direito sobre o corpo do feto. Este novo ser tem, desde o momento da concepção, uma individualidade própria. À mulher, assiste antes, uma especial obrigação de guarda e protecção daquele novo ser humano.
Quais serão então os argumentos sérios esgrimidos em defesa da liberalização do aborto, até determinada altura?
Qual o critério escolhido para admitir a realização do aborto livre nas primeiras dez semanas?
Qual a alteração significativa que ocorre no feto entre a 10.ª e a 11.ª semana que justifique a sua liberalização?
No primeiro mês de gravidez (entre a 3.ª e a 4.ª semanas) o feto mede aproximadamente 4 mm, o seu coração já começou a bater, o estômago, o fígado, o pâncreas, os pulmões, os brônquios e o aparelho urinário já estão esboçados.
A incoerência aumenta ainda mais quando, em Portugal, os embriões fertilizados “in vitro” têm, até eles, protecção legal.
Admitir a liberalização do aborto, invocando como até agora tem sido feito, a liberdade da mulher, que curiosamente teve direito a nascer, de decidir sobre a vida de outro ser humano, é no mínimo a negação - num duplo sentido - do fundamental princípio da igualdade:
- Entre a vida da mãe e a vida do filho;
- Entre o direito da mãe e o mesmo direito do pai.
Admitir a liberalização do aborto, invocando, como até agora tem sido feito, motivos de ordem sócio-económica como a miséria é assumir que o Estado se demite da sua mais elementar função - a Promoção e Protecção da Dignidade da Pessoa Humana.
O Estado, ao não ter resposta para resolver o problema da mulher que quer abortar porque não tem situação económica que lhe permita ter aquele filho está a admitir a sua incapacidade para dar resposta a um problema da sociedade que tem obrigação de resolver.
Permitir ao Estado que se demita desta sua obrigação, é admitir a desvalorização da Dignidade da Pessoa Humana. É admitir ao Estado que, em vez de conduzir o seu esforço no sentido de criar as condições educativas, sociais e económicas, por forma a tentar resolver o problema, se desresponsabilize das suas obrigações e opte pela solução mais fácil, mais comodista e mais cobarde, permitindo a eliminação dos seres humanos mais débeis, mais dependentes e por isso totalmente indefesos.
Permitir ao Estado este tipo de conduta fácil é abrir a janela, se não mesmo a porta, para que todo o tipo de violação da Dignidade da Pessoa Humana seja no futuro permitido, em nome da falta de meios, em nome da vontade, ou da liberdade, dos mais fortes - aqueles que já nasceram porque tiveram a sorte de a mãe os querer, de a mãe ter os meios para prover ao seu sustento.
Quando o Estado e a sociedade admitem legalizar estas condutas, não estamos em presença de uma sociedade que dignamente possa intitular e eleger como princípio constitucionalmente consagrado o respeito pela Dignidade da Pessoa Humana.
Como católica, entendo que a Vida é um Dom que só Deus pode dar e também só Deus deve tirar.
Como cidadã, entendo que a Defesa e a Promoção da Vida só é possível se a Dignidade da Pessoa Humana for devidamente defendida, respeitada e salvaguardada desde o seu início - desde a fecundação.
Como católica e como cidadã, entendo pois que a actual lei vai até ao máximo do que é moralmente permitido ao admitir que, em casos limite devidamente analisados e ponderados, seja excluída a ilicitude do aborto.


ANA BÍVAR
Assistente da Universidade Autónoma de Lisboa

in, Vida e Direito. Reflexões Sobre Um Referendo. Cascais: Principia, 1998, pp. 16-17

Razões jurídicas contra o aborto livre

Em próximo referendo seremos chamados a pronunciar-nos sobre se concordamos ou não "com a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, se realizada, por opção da mulher, nas 10 primeiras semanas, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado".
Tal pergunta, na referência que faz a um fenómeno de despenalização, confronta-nos basicamente com a questão de saber se o nosso ordenamento jurídico deve valorar positiva ou negativamente um determinado comportamento, com as correspondentes consequências no plano sancionatório. E isto porque despenalizar é retirar valor jurídico negativo a determinados comportamentos, que deixam de ser objecto de consideração pelo Direito Penal e passam a ser considerados aceitáveis pelo ordenamento jurídico.
Especificamente, o comportamento que está em questão é o correspondente à prática pela mulher do aborto livre (livre na decisão de o praticar e na fundamentação dessa decisão) nas dez primeiras semanas da gravidez, perguntando-se se esse comportamento será de despenalizar, particularmente, quando for praticado em estabelecimento de saúde legalmente autorizado.
Resumindo, a questão (depois de depurada de arranjos estético-linguísticos encontrados pela Assembleia da República) é a seguinte: é juridicamente aceitável no nosso ordenamento o aborto realizado por livre e unilateral decisão da mulher nas circunstâncias de tempo e lugar supra-identificadas?
A esta pergunta responderei: "não". E responderei deste modo não só por imperativo de consciência, mas também em resultado da ponderação dos seguintes argumentos jurídico-políticos:
1.º A Constituição baseia a República na dignidade da pessoa humana (art. 1.º), e nesta referência aponta decisivamente no sentido de que os seres humanos não podem ser em nenhum momento, nem com referência ao período da sua gestação, degradados à condição de meros objectos ou mesmo à condição de meros exemplares de uma espécie; o ser humano não começa por ser objecto - simples coisa - no período gestacional, para só mais tarde se transformar em pessoa; o ser humano é depois de nascer, o que sempre foi desde que se iniciou a sua gestação; tem e sempre teve a mesma dignidade fundamental de pessoa humana.
2.º Admitir, nos termos ora questionados, o aborto livre (o aborto que se pode realizar por qualquer razão, simplesmente porque se quer, sem mais ou sem que o ordenamento jurídico queira saber mais) é pôr em crise o valor fundamental da dignidade humana; é degradar o ser humano em gestação à condição de mero objecto - à condição de coisa livremente disponível pela vontade de outrem -, esquecendo-se e preterindo-se a sua dignidade fundamental de pessoa humana; juridicamente só objectos ou coisas - e mesmo assim nem todas - são livremente disponíveis; a realidade humana não se encontra à livre disposição de ninguém, sob pena de a degradarmos;
3.º Por outro lado, a Constituição determina que a vida humana é inviolável (art. 24, n.º 1), impondo por esta via não só a protecção da vida dos seres humanos nascidos, mas também, e designadamente, uma proibição de se pôr em crise o nascimento da vida humana; prejudicar o nascimento de um ser humano é violar a vida humana, no sentido de que esta deixa de se realizar; a vida humana é inviolável tanto na sua actualidade com em todo fenómeno que a potencie;
4.º Neste sentido, aceitar uma solução de aborto livre é também admitir que a vida humana nascente pode sucumbir diante da ponderação de quaisquer interesses - mesmo os mais egoísticos - que serão afinal considerados - todos eles - primaciais; é recusar a inviolabilidade de princípio da vida humana; é admitir a sua violabilidade de princípio;
5.º Os valores da dignidade da pessoa humana e da vida humana podem surgir, em concreto, em conflito com outros valores, impondo-se nesses casos uma adequada ponderação dos valores conflituantes (vida versus vida; dignidade humana versus dignidade humana); e pode caber ao legislador definir para esses casos critérios de ponderação de valores conflituantes; o que o legislador não pode fazer, porque a Constituição não o admite (art. 24, n.º 1), é pôr o ordenamento jurídico na posição de quem aceita em branco situações de decaimento absoluto dos seus próprios valores fundamentais.
Neste sentido, em síntese, admitir o aborto livre, sem condicionar a sua realização a situações gravíssimas de conflito de valores homólogos, não só fere a dignidade da pessoa humana como implica que se abra espaço para a violação indiscriminada da vida humana.
Contra este entendimento não se diga que o que se pretende com uma solução de aborto livre é, humanisticamente, retirar o estigma criminal a quem aborta e evitar a aplicação nestes casos de sanções penais tradicionais e desajustadas. É que, por um lado, esse estigma – onde existe – não nasce por decreto; resulta antes e desde logo de uma valoração negativa que o próprio corpo social faz acerca de comportamentos humanos. Acresce que o Direito Penal não pode deixar de cumprir a sua função básica que é a de assegurar a integridade do ordenamento jurídico com referência aos seus valores ou bens jurídicos essenciais, protegendo-os e oferecendo meios jurídicos de reacção contra comportamentos que os prejudiquem. Enquanto a dignidade da pessoa humana e a própria vida forem valores fundamentais do nosso ordenamento, o Direito Penal não pode nunca desinteressar-se da sua protecção, maxime em questões como as do aborto: tem de cuidar da sua garantia; e se esta garantia tiver de passar por sanções, o Direito Penal não pode deixar de as prever, ainda que procure que sejam ajustadas, adequadas ou proporcionadas.
Contra a solução que está agora posta em questão, militam ainda outros argumentos pontuais a que só muito sumariamente farei referência:
1.º A solução de permitir a realização do aborto por opção unilateral da mulher, descuidando-se a posição do homem, viola o princípio da igualdade (art. 13.º da CRP) e a valorização constitucional da paternidade e não só da maternidade (art. 68.º da CRP);
2.º Essa solução é arbitrária, e por isso a-jurídica, ao permitir o aborto livre até às dez semanas de gravidez (porquê dez semanas?);
3.º Na lógica da solução proposta – que não aceitamos – não se compreende que se despenalize uma situação só na medida em que o comportamento que a determina se realize em determinadas circunstâncias de lugar: não é criminosa a mulher que aborte em estabelecimento de saúde legalmente autorizado, mas já é criminosa a que aborta em qualquer outra circunstância de lugar; a solução proposta é assim, neste aspecto, atenta a sua própria lógica, incoerente.


AFONSO D’OLIVEIRA MARTINS
Doutor em Direito
Professor da Faculdade de Direito da Universidade Lusíada
Advogado

in, Vida e Direito. Reflexões Sobre Um Referendo. Cascais: Principia, 1998, pp. 13-15

Prefácio

Foi com muito gosto que aceitei redigir umas breves palavras de prefácio à iniciativa promovida por um grupo de pessoas ligadas ao Mundo do Direito, que com o apoio da Editora Principia decidiram publicar um conjunto de pequenos depoimentos, numa tomada de posição pública sobre o referendo ao aborto de 28 de Junho próximo.
São textos sinteticamente alinhavados, diversificados nos estilos e nas abordagens, mas em que se regista o diapasão comum da profundidade das razões, do rigor das elucubrações, da vibração e da paixão que é sinal da importância do que está em jogo. Muitos parabéns a todos os que nela participaram, dando um testemunho público e sério, numa causa justa.
Nos dias que correm, sobretudo em Portugal, é por si só muito assinalável que um grupo informal de pessoas tenha metido ombros a uma tarefa desta natureza. É que não são muito frequentes os exemplos de vivacidade da sociedade civil, em que progressivamente se assiste ao enfraquecimento dos liames da interdependência social. E são também raros os exemplos de esforço desinteressado, de coragem intelectual, de combatividade na defesa dos princípios e dos valores em que se acredita e por que vale a pena viver, sobretudo quando isso se faz contra a tirania da opinião publicada e o foco de atracção dos oportunistas - estar sempre com o poder e com a maioria. O que diferencia os homens de carácter é a capacidade de estarem com a sua consciência - se em minoria com coragem, se em maioria com humildade.
Mas a satisfação que tenho ao prefaciar esta publicação duplica ao observar o modo como o tema foi uniformemente retratado por cada autor, com fortes argumentos que desembocam sempre no sentido do respeito do direito à vida - portanto, do não no referendo ao aborto.
Eu também partilho inteiramente dessa profunda convicção. O aborto jamais pode ser "esterilizado" naquilo que ele não é, num qualquer nominalismo vazio. Quer se queira, quer não se queira, por muito que isso custe, o aborto é sempre a eliminação de uma pessoa humana não nascida, a destruição de uma vida sagrada.
Em termos jurídicos, pois que múltiplas outras abordagens seriam possíveis, este problema está indissociavelmente ligado à protecção da pessoa humana como princípio constitucional que é, em Portugal e em qualquer Estado de Direito. Este princípio implica que a pessoa humana, só pelo facto de o ser, exige o respeito do Estado, que a venera como fim último do Direito que produz, ao mesmo tempo vinculando-se à sua protecção nas diversas circunstâncias em que essa protecção se imponha.
A eminente dignidade da pessoa atribui-lhe, desde que começa a existir (e esse começo é hoje bem delimitado pela ciência), um núcleo essencial de poderes e deveres, dos quais o primeiro é o direito à vida. Por ele se há-de dizer não à guerra (mas sim à defesa e à segurança), à pena de morte, à eutanásia e, pelas mesmas razões, ao aborto livre.
Sem dúvida alguma que a incriminação das condutas se apresenta como um instrumento imprescindível, conquanto maximamente repressivo e por certo muito antipático, na defesa da juridicidade. Não é a única dimensão, porque é prioritária uma intervenção social que erradique, nas causas, este flagelo, tarefa dos políticos e das associações, e que apoie a maternidade e a filiação em qualquer circunstância. Mas isso não pode esconder a natural ilicitude penal do aborto, a qual significa que, para o Direito, a eliminação da vida humana intra-uterina é um mal muito grave, ao ponto de justificar a respectiva tutela neste plano. Pode, em concreto, este ser justificado ou desculpabilizado, como qualquer outro crime (por legítima defesa, estado de necessidade, etc...). Mas para quem acredita no Direito Natural não há volta a dar-lhe: se a violação da vida não fosse crime, o que então haveria de sê-lo?
Mercê da consideração de alguns circunstancialismos, tem-se divulgado a aceitação de algumas hipóteses-limite em que o aborto não deveria ser considerado como crime. Foi nesse sentido que, em 1984, se aprovou a primeira lei do aborto, no ano passado levemente retocada. Seriam para alguns situações extremas, nas quais estariam em causa razões que eventualmente poderiam concorrer com a vida humana intra-uterina, prevalecendo mesmo sobre ela. De certo modo, ela procurou como que tipificar algumas causas de justificação privilegiadas pela lei (violação, perigo para a vida da mãe...).
A verdade é que, no presente debate sobre o aborto, nenhuma aproximação dessa natureza se pretende fazer. Tal como decorre da formulação que foi aprovada, vai simplesmente perguntar-se aos Portugueses se aceitam a legalização do aborto livre. Nenhuma outra coisa está em cima da mesa.
É certo que a pergunta ainda integra outros aspectos, como o da limitação às dez semanas de gestação e o da prática do aborto num estabelecimento de saúde legalmente autorizado. Tudo isso não passa, no entanto, de pormenores que se desviam do fulcro do problema:
- o prazo de dez semanas assume-se como irrelevante, porque nada acontece de especial nesse momento que altere, qualitativamente falando, a realidade que já existia, que é a da vida humana intra-uterina de um ser biologicamente individualizado;
- o facto de a operação de aborto ser feita num estabelecimento de saúde legalmente autorizado nada tem a ver com a realidade da eliminação da vida do filho, já que apenas se relaciona com as condições de saúde em que tem lugar a operação do ponto de vista da mãe.
O aborto livre, por mais curto que seja o prazo para a sua execução e por mais cautelas que se tenham na realização dessa operação num estabelecimento de saúde, jamais se pode considerar admissível à luz da dignidade da pessoa. A razão é simples: porque a sua legalização implica aceitar que a dignidade da pessoa humana não nascida se perca; porque a sua legalização tem a consequência de a um ser humano - a mãe - se atribuir o "poder de vida e de morte" sobre outro ser humano - o filho que vai ser eliminado.
A civilização dos valores do Mundo de hoje fez-se paulatinamente, com pequenos avanços e alguns recuos, numa firme senda de dignificação do Homem. Através de muitas etapas, como a abolição da escravatura, a extinção da pena de morte ou a humanização das penas, fomos construindo um Mundo de princípios, em que a pessoa humana se apresenta, cada vez mais intensamente, no cume da Ordem Jurídica.
Esta não é só uma posição religiosa (cristã ou islâmica), pois se situa no domínio da mera humanidade. Não é só uma posição moral, muito menos de moral sexual, pois se fundamenta na mera existência da vida. E apela, decerto, à tolerância e ao diálogo, que não podem confundir-se com recusa ou renúncia aos valores.
A legalização do aborto livre - diferente de justificação ou desculpabilização de casos concretos - é a passagem de uma fronteira decisiva, representando um grosseiro recuo nessa protecção, que permite - como outrora na lei da selva - o domínio dos fortes sobre os fracos, dos que já estão na vida sobre os que vêm depois. Essa não é a sociedade humana que sempre idealizei e por que, esteja onde estiver e exerça os cargos que exercer, sempre pugnarei a título pessoal.
Acredito numa sociedade em que prevaleça a Solidariedade para com os mais fracos e os mais débeis, que por isso mesmo merecem a nossa protecção. Mais fracos e mais débeis no plano económico, pessoal, social e afectivo, no da exclusão como no da deficiência.
E há no Mundo pessoa mais frágil, mais indefesa e mais inocente do que um ser humano não nascido?
É certo. O referendo vai ser apenas um confronto de opiniões: contar a maioritária apura uma decisão política legítima, não define a verdade ética. Por outro lado, não se pode defender a vida sem veemência. Mas esta não deve gerar falta de respeito pelos adversários nem recusa de diálogo com os que honestamente julgam que outras soluções são melhores, os quais, evidentemente, podem estar em erro, mas não são criminosos ao dar voz à sua consciência. A criação de redes de diálogo é, mesmo num caso extremo como este - pela radicalidade do valor envolvido: a vida - a abertura de vias de respeito pela humanidade, de prática ética da tolerância - pelo pensar diferente, não pelos actos ilícitos - até de busca da verdade, que não é propriedade de nenhum homem ou grupo. Sejamos firmes mas humildes, sem cair no relativismo. Recordemos que, para todo o homem, o sumo critério ético é seguir a voz da consciência, recta e reflexiva, como já ensinou São Tomás de Aquino. E pratiquemos a palavra augustiniana no diálogo: "Amai os homens, matai os erros". Combater com determinação as ideias erradas com respeito total por quem as defende é, neste caso, a forma de praticar o diálogo, assente na clareza das posições e no respeito pelo outro.
Inspiremo-nos no exemplo - tão a propósito neste termo do século XX - de Madre Teresa de Calcutá, cuja exortação final do seu belo hino Viva a Vida aqui procuramos cumprir: defender a Vida. Acompanhamo-la, na totalidade e sem medo de ser, na defesa do fundamental e no essencial, apodados de radicais, como ela foi. Não tenhamos medo de dizer como ela:


Viva a Vida

A vida é uma oportunidade, aproveite-a.
A vida é beleza, admire-a.
A vida é felicidade, saboreie-a.
A vida é um sonho, torne-a realidade.
A vida é um desafio, enfrente-o.
A vida é um dever, cumpra-o.
A vida é um jogo, jogue-o.
A vida é preciosa, cuide dela.
A vida é uma riqueza, conserve-a.
A vida é amor, goze-o.
A vida é um mistério, descubra-o.
A vida é promessa, cumpra-a.
A vida é tristeza, supere-a.
A vida é um hino, cante-a.
A vida é uma luta, aceite-a.
A vida é uma aventura, arrisque-a.
A vida é felicidade, mereça-a.
A vida é a vida, defenda-a.


Lisboa, 15 de Maio de 1998


ANTÓNIO DE SOUSA FRANCO *
Doutor em Direito
Professor Catedrático das Faculdades de Direito da Universidade de Lisboa e da Universidade Católica Portuguesa

in, Vida e Direito. Reflexões Sobre Um Referendo. Cascais: Principia, 1998, pp. 9-12

* Nota: O Professor Doutor António de Sousa Franco (n. 1942) viria a falecer no dia 9 de Junho de 2004.

O objectivo

O objectivo deste blogue é contribuir para a discussão pública em torno do referendo acerca da interrupção voluntária da gravidez, cuja proposta foi recentemente apresentada pela Assembleia da República.
Nele serão publicados os textos reunidos no livro Vida e Direito. Reflexões Sobre Um Referendo, editado em 1998 a propósito da realização do referendo acerca da despenalização da interrupção voluntária da gravidez realizado então.
Os argumentos continuam válidos, pelo que faz todo o sentido invocá-los novamente, volvidos que são oito anos. A perspectiva apresentada é essencialmente jurídica, pois uma alteração legislativa é, acima de tudo, uma questão do foro jurídico, não sendo, portanto, possível desconsiderar tais reflexões, sob pena de o debate acerca desta matéria padecer de desonestidade logo à partida.
Os textos são assinados por vários autores, que serão sempre referenciados.


FICHA BIBLIOGRÁFICA

Título
Vida e Direito. Reflexões Sobre Um Referendo

Organizadores
Jorge Bacelar Gouveia e Henrique Mota

Copyright
PRINCIPIA, Publicações Universitárias e Científicas
Cascais
1.ª edição - Junho, 1998

ISBN
972-97457-9-X

Depósito Legal
124207/98

O mote

Resolução da Assembleia da República n.º 54-A/2006. Propõe a realização de um referendo sobre a interrupção voluntária da gravidez realizada por opção da mulher nas primeiras 10 semanas.

A Assembleia da República resolve, nos termos e para os efeitos do artigo 115.º e da alínea j) do artigo 161.º da Constituição da República Portuguesa, apresentar a S. Ex.ª o Presidente da República a proposta de realização de um referendo em que os cidadãos eleitores recenseados no território nacional sejam chamados a pronunciar-se sobre a pergunta seguinte:
«Concorda com a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, se realizada, por opção da mulher, nas primeiras 10 semanas, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado?».

Aprovada em 19 de Outubro de 2006.
O Presidente da Assembleia da República,
Jaime Gama.

Publicada no Diário da República, Série 1, n.º 203, 2.º Suplemento (20 de Outubro de 2006), p. 7348-(6) a 7348-(6). [Página do Diário da República]