30.10.06

«Não» à descriminalização do aborto livre

Pede-se-me um depoimento, uma revelação pública da minha resposta à pergunta que vai ser colocada aos portugueses no próximo referendo sobre o aborto. Afinal, uma declaração de voto. Cingir-me-ei, pois, ao pedido, no espaço deste curtíssimo texto.
Votarei «Não». Não à descriminalização do aborto livre ou a pedido da mulher durante as primeiras dez semanas de gravidez, porque é de uma verdadeira e própria descriminalização que se trata.
Apesar dos muitos intentos de mascarar realidades, ninguém de boa-fé, conhecedor de noções básicas de direito penal, poderá negar que permitir a destruição voluntária, sem qualquer indicação, de uma vida humana intra-uterina representa a degradação desta, nos primeiros dois meses e meio de existência, a um nada jurídico.
Passo a explicar a afirmação.
Hoje e independentemente do referendo, o Código Penal português exclui a ilicitude de certas condutas que, apesar de integrarem a descrição típica do art. 140.º (crime de aborto), se entende deverem ser toleradas pelo Direito, por traduzirem uma decisão tomada num agudo conflito de interesses. Verifica-se, por assim dizer, um choque de bens jurídicos: o desenvolvimento do processo vital embrionário põe em perigo outros bens igualmente acautelados pela ordem normativa. O Direito considera então que, nessas precisas circunstâncias, o sacrifício da vida intra-uterina está justificado.
Este sistema - vigente entre nós independentemente do referendo, repito – e a que a doutrina chama «sistema de indicações», abrange já todas aquelas situações dramáticas que comovem o cidadão comum. Pense-se nos casos em que a prossecução da gravidez traz consigo grave perigo para a vida ou para a saúde física ou psíquica da mulher – incluídos aqueles em que a perturbação psíquica é provocada por problemas económico-sociais; figurem-se as hipóteses em que a gravidez resulta de crime sexual; considerem-se ainda as situações de doença grave ou malformação do próprio feto. A lei penal que já temos não permite que alguém sofra pena por um aborto praticado nestas circunstâncias.
Apetece então perguntar: que falta? Que outras causas se podem excogitar que realmente justifiquem a destruição impune de uma vida humana em gestação? Que outros bens jurídicos podem entrar em colisão com a vida intra-uterina, suplantando-a em carência de protecção?
Só é possível compreender a proposta do aborto livre (ou por simples manifestação de vontade da mãe nesse sentido) mudando a lógica com que até agora, seguindo o legislador penal, trabalhámos. O aborto livre ou a pedido supõe não um conflito de bens jurídicos mas a gratuita supressão de um deles. Ficciona-se que durante as dez primeiras semanas de gravidez e sempre que a mãe o pedir, não existe bem jurídico vida intra-uterina. Isto é: vida humana em processo de desenvolvimento obviamente que existe – isso é um dado adquirido e unânime da ciência médica que não compete ao Direito contradizer; o poder jurídico-penal sobre um facto biológico consiste tão-só em reconhecer-lhe ou negar-lhe relevância para efeitos de protecção. O que deixa de existir é precisamente esta protecção. Em suma: nas condições que a pergunta do referendo aponta, o bem jurídico-penal vida intra-uterina desapareceu.
Só reaparece se alguém, contrariando a vontade da mulher, a fizer abortar. Nesse caso e paradoxalmente, o crime revive: revive como crime de aborto e não, como a lógica exigiria, um delito contra a liberdade e a integridade física da mulher.
Concluindo: a introdução de um «sistema de prazos», de um simples «espaço de tempo» dentro do qual é negada ao feto toda e qualquer protecção por parte do Direito, representa um salto de qualidade no tratamento legislativo do crime de aborto que, em meu entender, não deve consentir-se. A única razão político-criminal pela qual poderia admitir-se um ensaio de tal opção legislativa consistiria em provar que tal descriminalização diminuiria o número total de abortos ou, pelo menos, eliminaria os clandestinos. Ora - como a experiência de outros países documenta amplamente - o que se verifica é que aumenta o número total de abortos (legais + clandestinos) e se mantém a dimensão do fenómeno do aborto clandestino.
Julgo que para declaração de voto já basta.


CRISTINA LÍBANO MONTEIRO
Mestre em Direito
Assistente da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra

in, Vida e Direito. Reflexões Sobre Um Referendo. Cascais: Principia, 1998, pp. 48-49

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